domingo, abril 27, 2008

Consultório psiquiátrico - Baseado em fatos reais (11)

"Chegamos a esse mundo
Sem possibilidade de retorno
descobrimos que nossas mentes nos levaram,
tão longe da verdade, dolorosa verdade...
Do que somos!"

Greg Graffin




Chore. Se emocione. VIVA. Porque o tempo não para e não volta.
- Doutor, tô com muita dificuldade.
- Que dificulades senhora?
- Dificuldades.
Nesse momento percebi que algo não ia bem com aquela senhora loura de 68 anos. O filho fazia "sinal de negativo" com a cabeça. Sem que a mãe percebesse. É claro.
- Com o que a senhora tem dificuldades?
E ela deu um intervalo para pensar. Não sei o que fez. Deve ter vasculhado sua mente. Aparentemente sem resultado. Não conseguindo encontrar a resposta, respondeu:
- Dificuldades.
Respirei fundo.
- Com o quê?
- Ah... (longa pausa) para fazer minhas coisas.
- Que coisas?
- lavar roupa, fazer comida... não consigo mais.
- Como não consegue?
E ela repondeu...
- Não consigo. Não sei porque.
E me veio à mente: demência! Como seria alguem vivenciar a queda gradativa e inexplicada de suas próprias faculdades mentais? memória, abstração, humor... tudo vai mudando aos poucos. E a pessoa percebe. Mas como perde tambem algo da capacidade de abstrair, não consegue abstrair bem sobre o quer lhe ocorre. Permanece uma vaga sensação de que algo está errado. "Algo não me vai bem". E pronto.
- Vamos tentar descobrir o que está acontecendo. Pode ser demência. Vou solicitar uns exames para tentar descobrir a causa.
E solicitei.
- Voltem por favor com os exames prontos. Espero que seja uma causa reversível.
E após se despedirem, sairam do consultorio.

quinta-feira, abril 24, 2008

Consultório psiquiátrico - Baseado em fatos reais (10)

"Conhece-te a ti mesmo"

Sócrates



A diferença socio-cultural entre o profisisonal de saúde (principalmente os de nível superior) e o típico paciente usuário do SUS é tristemente flagrante. A barreira cultural e econômica gera um bloqueio mental de tal magnitude que, na maioria das vezes, as instruções médicas são relegadas ao plano profundo da inconsciência e da irrelevância. Resultado: má (ou -não) aderência ao tratamento prescrito, cujo protocolo, construido ao longo de décadas de pesquisa científica, alicerçado sobre séculos de especulação culural, se esvai no ar de poucas palavras, como chuva ao mar, perfume ao vento, água ao ralo. Talvez a ciência médica deva expandir sua visão e passar também décadas estudando como derrubar suas barreiras, ao invés de tentar sempre dar passos á frente, como ciência que tenta ter um fim em si própria.
Expandir para so lados amplia o horizonte, enquanto a expansão frontal amplia o pecurso acumulado

...

Encontremos tempo para a introspecção. A autopsicovarredura socrática da vida nos leva ao desejo e ao objetivo de aprender a controlar as emoções e a exercitar, no ponto "P", a humildade. Até que ponto ordenar, interferir, influenciar e ser-ativo? Até que ponto se deixar levar, obedecer e ser-passivo? Como manter-se equilibradamente nesse intervalo de infinitos pontos, ser socialmente aceito no auto e hetero-self? Tentemos descobrir

...

Equilibremos nossos anseios dando um passo de cada vez e buscando, visando e exercitando a humildade. Sendoo menores do que pensamos, nos engrandecemos no momento da constatação. O pensamento de que somos menores e que estamos sempre aprendendo deve conter a ansiedade de abraçar o mundo de uma só vez (o que consiste em uma das muitas facetas da arrogância humana)

...

A quem possa pedir perdão: lembrem-se de mim como um ponto de passagem

segunda-feira, abril 21, 2008

Consultório psiquiátrico - Baseado em fatos reais (9)

"Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz!"

Clarice Lispector



A vida em flashes verbais

(Reflexões interconsultas): Para tornar inteligível, decifrável, transmissível, objetivo e científico a mente humana, precisamos transformá-la em algo racional, lógico e temporal. Esta é a tentativa da psicopatologia e de inúmeras outras ciências e filosofias da mente. Grosso modo, claro.
Como seria se tentássemos por em palavras nossas experiências do mesmo jeito ilógico, irracional e atemporal que elas se nos apresenta? Fiz uma tentativa. Cronológica pelo menos.


1982 – Segundo a minha mãe e os documentos que a que fui sendo apresentado ao longo da vida, este é meu ano de nascimento. Não tenho, obviamente, razões para duvidar.

1983 – “Vamos entrar, que já vai chover e seu pai está chegando”. Nossa... ainda assim pude perceber o quão verde eram as folhas das árvores e quão amarelos eram os azulejos da escada que nos conduzia à cozinha da casa, pela área externa. Acho que nem andava. Ou corria.

1984 – “Vamos garotão... para de pilotar esses pneus que a kombi vai lhe levar em casa”. E levou mesmo. Ao derredor, mato, árvores e trilhas ao longe. “Thiago, não pisa no banheiro que a empregada acabou de lavar”.

1986 – “Thiago! Você não pode com essas tintas... venha pra cá com seus colegas queimar a cera”. E do lado de fora a outra turma se acabava no pula-pula, do qual eu morria de medo e ninguem sabia. No topo da escada branca havia um jardim, um depósito e uma piscina. E a professora Sônia estava em todo lugar.

1987 – “Meu filho! Sua escola tem um parque imenso...”. E havia chegado atrasado. E quantas janelas altas! “seus primos estudam ai”. Conheci a “Madá”, o “Buís” e o “Mário”. E a professora Cida, cujo nome haveria de rotular uma cadela. Mais adiante.

1988 – “Que dia é hoje?” falou-me com a mão cheia de dinheiro. “Sexta-feira!!” Era o dia de comprar lanche na barraquinha depois da aula. Ahahahahahahahah

1989 – “Hoje nós não vamos fazer quase nada, porque é nosso primeiro dia de aula”. Olhei para o estojo azul (nossa, poderia desenhar se tivesse essa habilidade...), via a caneta BIC que sabia ser desnecessária nessa série e pensei: “quantos anos ela deve ter?” Pelos menos o estojo me supria de tudo. Ah, a mochila preta custou onze mil (cruzeiros? Cruzados? Etc?)

1990 – “Xí, a Argentina fez um gol”. E Taffarel estava lá no chão. Nunca gostei dele. Mas Jaspion e o Atari me esperavam, e a diversão estava garantida.

1992 – Retrospectivo: “Maior ventura que poderia desejar em minha pretensa vida de 105 anos”. Ahahaha... como se esconder de si, se nem sabia onde estava? Phantasy star no master!!

1993 – “Acho que os meninos falharam um pouco”. E após ter feito meu desabafo público em plena sala de aula pré-adolescente, foi tudo que ela disse a respeito. Em 180 dias letivos. E nunca mais me viu.

1994 – Ponto de fusão “um claro assim não será por mal algum”. E meu xará Thiago Fonseca, que conheceria 5 anos depois, já resumia minha vida. Claramente confusa, sem explicação. E dá-lhe EC Bahia!!

1995 – Adriana Calcanhoto. Esquadros. Sonho de desodorante fã. Megalomania reativa adolescente. Ah..., e estava pra começar a segunda maior ventura.

1996 – Conheci a informática, os Arquivos X e muito dos meus amigos pra toda a vida.

1997 – “Não me conformo”. Não tinha vocabulário nem ordem de pensamento para saber exatamente contra o quê. Mas pelo menos aprendi a arranhar o violão. E seria o segundo Phantasy Star de minha vida.

1998 – Ah... paragens ao meio dia! Vence-te para ter paz. E então fez-se a luz...

1999 – “Alguma consciência política você precisa ter meu filho”. E despertou o desejo de consertar os erros, e de fazer o que é certo. E que luta!

2000 – “Rapaz, você foi com muita sede ao pote...” E não era pra ser assim?? Não, não era. E a marca foi funda, a ferida foi forte, e o sangue gerou frutos. Qual a hora certa de colhê-los?

2001 – Retornemos 9 anos. Ainda não aprendeu a lição? Aprenda, porque você vai ser médico!!

2002 – Aprendi que a dialética da vida é infalível, e passei a ter fé em alguma coisa que não conhecia direito nem tinha nome. “I can’t drive, because I am european”. Ahahahah...

2003 – E naquele abafado domingo, na praia de buracão: “você está da ACME”. Muitas saudades, mas já passou e mudou. Mas continua igual.

2004 – “Será que irei casar algum dia???”- hehehe – ACHO QUE SIM.

2005 – “Você é o medico da clínica não é??” era?? “quando voltar por essa trilha, serei outro homem”.

2006 – “Você vai querer que esse dia nunca acabe. Mas vai acabar”

2007 – “Que tipo de pessoa você vai se tornar?”. E a mesa branca indicou o caminho. Antenas seguem até o fim.

2008 – “Lá faz muito frio, leve agasalho hein!!” AHAHAHAHAHAHAHAHAHHAHAHA


Meu Deus, aonde esse calendário vai me levar???

Consultório psiquiátrico - Baseado em fatos reais (8)

"Trata-se realmente de uma vida complicada...
Quando "como você vive"
É "como você morre" "

Tony Sly




- Olá doutor, você é psiquiatra?
Olhei para seu rosto. Inédito. Quem será?
- Não, sou residente.
- Ah, é que tenho andado triste ultimamente, e não sei o que fazer...
Ele olhou para baixo. Nunca o tinha visto. Em corredores de hospital cruzamos com muitas pessoas. Reparamos em algumas, falamos com poucas, nos relacionamos com pouquíssimas, temos muito pouquíssimos amigos. Tinha comigo a chancela do acaso para justificar minha seguinte pergunta:
- Desculpe, mas de onde me conhece?
- Ah, uns amigos meus te indicaram. Disseram que você trata bem as pessoas.
O que passa na cabeça de um ser humano, nesse mundo egoísta e individualista, para ter perante a si a abertura para abordar num corredor do hospital (mais propriamente numa fila de elevador) uma pessoa que nunca viu para falar que está triste, precisando de ajuda? Passe o que passe, seja quem seja, seria no mínimo deselegante desculpar-me e sair para compensar meu atraso no ambulatório. E não o faria mesmo que tivesse todo o tempo disponível.
- Em que posso te ajudar?
E ele disse. Disse tristeza. Disse ansiedade. Disse perdas. Disse necessidades. Disse a idade. Na minha ignorância de principiante, considerei que ele não estava doente. Estava reagindo normalmente a circunstâncias estressantes da vida, o que nunca é pouca coisa.
- Pela psiquiatria, você não tem rótulo, não tem diagnóstico. Fique tranqüilo.
- Como tranqüilo? Estou cheio de problemas...
E quase chora. Cheio de problemas, e sem diagnóstico. E eu “chorei” em pensamento pelas falhas e incompatibilidades de nossa ciência rotulante que, no entanto, é o que temos de mais precioso.

sábado, abril 19, 2008

Consultório psiquiátrico - Baseado em fatos reais (7)

"Não adianta mesmo reclamar!
Acreditar que basta apenas se deixar levar..."

Tony Belotto



E tendo apoiado a cabeça por sobre a mão espalmada, e encostando o cotovelo sobre a mesa, pus-me a registrar no pronbtuário médico dados cotidianos sobre algum paciente.
Eis que P., interno da enfermaria, com um tapa em meu braço, retira a minha cabeça de seus confortavel apoio palmar.
- AH, AH, AH, AH
- O que é isso rapaz, você tá louco?
Antes que alguem dissesse alguma coisa, aparece G. (uma outra interna) que, por diversos motivos, falava pelos cotovelos. E ela disse
- Claro que está louco, senão não estaria aqui nessa enfermaria né!?!?? dããããã

...

AHAHAHAHAHAHAHAHAHA

Consultório psiquiátrico - Baseado em fatos reais (6)

"Guerreiro! Enfrenta-te, conhece-te, e vence a ti mesmo e a teu gênio contrário. Amplia teus horizontes e... faz naturalmente a coisa certa"

Amadeu Gonçalves



Palavras são os tijolos dos nosso muros. Difícil nos livvrarmos delas. O que acontece com o interesse das pessoas? porque é tão difícil perceber que compensa mais ser transparente? ser claro? ser aberto? Ou pelo menos respeitar quem tenta ser.
Há muitos anos divago, rio e falo sozinho acerca das relações entre a moral e o senso comum. Muitos anos. Diria que uma década e meia.
Trata-se de estarmos sempre ponderando, pensando, "maquinando" entre o que é certo e errado. Quando falamos, pensamos, sentimos e vivemos algo que vai de encontro à nossa moral latente, inconsciente, sofremos. E não interessa por agora a nomenclatura técnica para esse conflito. O que importa é que ele exsite, e vale para todos. E por ser poderosíssimo guia de nossos pensamentos e atitudes, devemos pôr sua compreensão em primeiro plano.

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Toda essa divagação me sobreveio ao lembrar, na cadeira do consultório, do filme "The wall", o qual assisti em 1998. Em 1999, assisti o show "The wall", do Pink Floyd, gravado em 1990, na Alemanha. Do filme The wall, da palavra muro, lembrei do muro de palavras e assim sucessivamente.

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- Doutor, eu gosto dele, e ele não tem nada pra oferecer. Como podem pensar que quero prejudica-lo?

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- Doutor, eu preciso ser internada, porque estou muito mal. Se você não me internar agora, vou tomar veneno de rato! e se eu morrer, você será o culpado.

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- Olhe doutor, não tenho saco pra tomar remedio. E esse lenga-lenga da consulta me tira do sério... mas sei que sem isso eu entro em crise. O que eu faço?
- Frequente as consultas.

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E pasei o dia ao som de The Ataris, Velhas virgens, No Use For a Name e Bad Religion no iPod. Eles me fazem lembrar a cada minuto que a vida é linda e infinita em poesia, criatividade, beleza e possibilidades.