quarta-feira, dezembro 03, 2008

Cinética dos gases, cinética da vida

Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.

Machado de Assis, A cartomante



Engraçado. A caminho de casa, peguei-me a meditar sobre tempos pretéritos... quem diria que o futuro manteria o passado tão distante?
Colégio. Aula de química. Cinética dos gases. "Um gás é constituído por moléculas isoladas, separadas umas das outras por grandes espaços vazios em relação ao seu tamanho, e em contínuo movimento de translação, rotação e vibração, em todas as direções".
Num gesto de audácia, impulsionei meus pensamentos, fundo da minha anônima consciência, a igualar os gases à espécie humana. Os movimentos aparentemente caóticos e isolados dos gases não seriam análogos às infinitas coincidências cotidianas que (quase sempre) nos passam despercebidas? Pois bem.
Estava a procurar a estação de trem mais próxima. Outrora tomara o presente caminho, o qual, contudo, não recordava de todo. Sob tranquilizante pretexto acerca do caminho que suspeitava conhecer, abordei a primeira pessoa cuja visão periférica me permitiu rotular como "minimamente confiável". Olhei para o lado.
- Pra estação é por essa rua mesmo? perguntei.
- É sim, com certeza. Eu estou indo pra lá. Ainda bem que construiram um trem por aqui, agora são apenas dezoito minutos de caminhada.
Era um homem alto, tez morena, troncudo, pouco acima dos quarenta anos. Paletó, gravata, sapatos engraxados. Belos sapatos. Pretos. Cabelo lambido para a esquerda, maleta preta à mão, caneta prateada no bolso da camisa. Não o olhei nos olhos, como que a saborear de antemão a não experimentada surpresa humana que a cinética dos gases da vida me enviava. O que seria?
- Pois é rapaz, eu tenho muita exeriência. Morava muito longe daqui, mais perto do centro, mais acabei mudando pra cá. Sabe como é. Deixei uma casa contruidinha, com trinta máquinas de costura embaixo. Tão lá. Mulher não quer saber de homem não, quer estrutura. Quer que o cara estruture a vida dela. Se ela deixa de ver o homem como estrutura, ela passa pra trás, até mesmo porque só se importa mermo é com os filhos, e olhe lá. Peguei uma de vinte e poucos, a filha com quatro ou cinco, e peguei pra criar. Vixe, isso tem tempo. Chegou agora, tá aí, pedindo pensão, os filhos com carro importado, tudo crecido, e eu aqui só à pé. À pé e trabalhando muito. Aliás, durmo três horas por dia, às vezes duas. Gerente de hotel de noite, de dia toco uma confecção. Inclusive tem encomenda pra Bauru e o Brás todo. Mas é bom rapaz, o trabalho é bom pro homem. Quando eu era mais novo... aliás, voce deve ter uns vinte e dois né?
- Não...
- Nada não, tenho muita experiência, bem te digo. Pior é na guerra! Trabalho duro, mulher pra curtir, boa comida e honestidade é o sentido da vida. Ah, o trem está ali, preciso pegar agora. Um abraço mermão!
E saiu em debandada para adentrar o vagão mais próximo. Eita cabra acelerado! No auge da minha relaxada inércia pós labuta, desci calmamente as escadas enquanto o trem se afastava, poucos metros abaixo. Ele já havia entrado.
E não nos parecemos com os gases!?!?