domingo, abril 12, 2009

Sabor imperceptível (1)

"O segundo, não o tempo, é implacável
Tolera-se o minuto, a hora suporta-se...
... mas o segundo é implacável"


Carlos Drummond de Andrade





Incrível a festa que nossa mente faz. Essa sopa de sabor indetectável, insondável. Seguir uma forma-pensamento do que quer que seja seria como tentar seguir uma molécula do que quer que seja no oceano, por qualquer espaço de tempo.

...

Estive a lembrar de algumas histórias.

...

Há cerca de duas décadas, cursava eu a quarta série do ensino fundamental (na época, chamava-se "ensino primário"). Era típico produto da classe média urbana de uma grande cidade. Vivia intensamente todas as vicissitudes da idade. Sabem aquelas paixões infantis, intensíssimas, protagonistas principais e coadjuvantes do palco mental de milhões de pré-adolescentes? Bem, não fugia à regra de ser dominado por elas.
A garota chamava-se K (por favor, preservem meu direito de lhe esconder a identidade). Não me lembro o sobrenome dela, embora lembre que por muitos anos evocava primeiramente este segundo nome ao evocar a imagem de sua dona. Estranho, pensava. Associar o nome ao sobrenome, e assim, a pessoa ao sobrenome, esquecendo-se do nome...
Aparte conjecturas sobre o nome, vamos à história.
Contava com 11 anos, e encarnava muitíssimo bem o estereótipo do pré-adolescente tímido e acanhado. Sempre na defensiva, salvaguardado por um bem criado universo composto por família, brinquedos, alguns amigos do mesmo sexo e muita fantasia. A garota sequer notava minha presença, exceto nos momentos de "esbarrão", ou naqueles que por algum acaso o destino me brindava com a sorte de a mesma me pedir algo emprestado, como um lápis ou uma borracha. Talvez houvesse outros momentos. Não lembro bem. Sinto que não havia.
Não sabia o que fazer pra chamar a sua atenção, e quando por acaso (infelizmente, um acaso raro) o fazia, aquela se dava por uns poucos segundos. Míseras migalhas do tempo. Às vezes, quando um amigo em comum me perguntava algo, ou quando avançávamos juntos para a mesma maçaneta da sala de aula, ou quando coincidentemente chegávamos juntos ao balcão de lanche da cantina pra fazer algum pedido, tinha minhas míseras migalhas de tempo.
Eram segundos lindos! Essas maravilhas da sorte, que mais se pareciam com brincadeiras, joguetes do destino (como que a saborear sua imponente superioridade a timidez infantil) brindavam minhas esperanças, dando-lhes fortes pilares de sustentação. Mas onde estariam as vigas?
Eu não sabia.
Voltemos à escola. A sala de aula era uma bagunça. Havia conversa o tempo todo. Gritaria, bolinhas de papel voando, discussões sobre assuntos juvenis, aviãozinho, videogames, docinhos... Tudo isso em pleno avançar das aulas. No antes, no durante e no depois. O caos adolescente levava pais e professores à beira do desespero.
Todos sabiam das conversas escusas dos docentes que propunham a remoção de certos alunos, mais "encrenqueiros", pra outras turmas. Achavam que separar os alunos bagunceiros mais afins resolveria o problema. Outros, à beira do limite, propunham punições ainda mais severas para os conversadores. O assunto era debatido em reuniões de pais, reuniões com os estudantes. Nada era resolvido.
Por vezes tais conversas escusas se transformavam em broncas coletivas (o popular "esporro") quando algum professor finalmente alcançava os limiares da paciência.
Nossos educadores eram reféns. Alguma coisa precisa ser feita! Diziam.
E assim passaram-se semanas, meses. Finalmente decidiram: mapa de sala!
Mapa de sala: Tratava-se de um artifício onde os professores decidiam arbitrariamente onde determinados alunos se sentariam durante o período de uma semana. Após esse tempo, o mapa mudava. A idéia era manter os alunos afastados de membros da sua "panelinha", grupinho, equipe ou parceiros preferidos de conversa, diminuindo assim o barulho e o burburinho intra-classe-trans-aula.
Pra mim, não fazia diferença. Por mim! Tinha poucos amigos em sala. Não era de conversar muito (embora vontade não me faltasse). Não sei. Era tudo muito novo e confuso pra mim. Acontece que o Deus, o destino, ou o sei-lá-o-quê que governa nossa vida, ou simplesmente meu acaso-professora, resolveram me pregar uma peça. Seria mesmo uma peça? Até hoje não tenho resposta. Mas foi uma das peças mais maravilhosas da minha vida. O veneno era doce. A rapadura era dura. O mel e o fel.
Ao raiar da segunda-feira, ao chegar à classe, vi que K Fora randomizada, pelo mapa de sala, para sentar na primeira carteira da fila do meio. Eu ficara na segunda carteira! Meu Deus, quisera eu saber o preço de uma molécula de adrenalina! E ela estava ali, de graça, sem esforço, sem artifícios, sem acasos, diante de mim, fadada a uma eterna semana de vizinhança didática!
Foi maravilhoso... Não sei se por sua vontade, educação de fino trato de que era possuidora, presença de espírito, benevolência, troquei mais palavras com K em poucos dias de vida do que em três anos de colegas de classe. Cada palavra era um doce. Um sabor inigualável, um bálsamo na alma, um barato, uma dose de qualquer coisa, qualquer droga. Era uma droga. Tal sabor me seguia, ia à minha casa, e lá eu entrava em leve abstinência, pronto pra receber nova dose no dia seguinte.
E assim fizemos trabalhos de dupla, leitura de textos. Dávamos bom-dia-boa-tarde um ao outro. Podia fazer algumas brincadeiras infantis (eram as únicas que conhecia) para lhe chamar atenção (mais pela infantilidade que pela brincadeira em si), e acabava conseguindo. Afinal, sentávamos em carteiras contíguas. Constatar tal ventura me levava aos céus... Meu espírito deve ter emagrecido uns bons quilos naquela época.
Passaram-se os dias (Afinal, uma semana tem apenas sete deles). Separamos-nos na sexta-feira. No caminho de casa, ia com o coração apertado. Será que na segunda ela estará na segunda cadeira e eu na terceira, ou ela será realocada para outra fila? Era torcer pra ver.
No domingo, ao brincar no quintal de casa, percebi meu olho direito (e logo depois o esquerdo) bastante avermelhado, pegajoso e lacrimejante. Conjuntivite! Disse minha mãe. Meus olhos estavam chorando por estarem inflamados, mas minha alma não sabia se ria ou se chorava. Disso dependeria onde K estivesse sentada na segunda-feira.
Após milhares e milhares de segundos, minutos, horas, cheguei à minha sala de aula. Contava com dez minutos de atraso, e, ainda assim, percebi que a aula não havia começado. Estranho. Diante da turma, postada em sua escrivaninha, professora S. permanecia calma, quieta, com uma folha de papel repleta de quadradinhos feitos à caneta. Só poderia ser o mapa de sala.
Inseguro, com os olhos conjuntivitemamente lacrimejantes, dirigi-me para onde julgava ser o meu-lugar-de-sentar. A turma, num gesto de escárnio apiedado, tratou de travar cochichos e olhares dirigidos ao meu estado ocular. Não liguei. Liguei, mas não tanto. Ligava mais para o meu destino, que certamente seria ali decidido em poucos minutos.
Julgava, não por coincidência, que deveria sentar-me ao lado de K. Fui atraído pra lá, meu inconsciente movimentou as minhas pernas. Afinal, nosso casamento estava nascendo, e uma semana de vida não poderia se acabar, morta, assassinada por uma simples canetada num quadradinho num papel.
Sentia-me como num palco. Os colegas de turma eram a platéia. Eu, meu eu, era meu próprio camarote. K era a protagonista, e minha alma era um fantoche. O que seria de mim, meu deus?
Eis que professora S., subitamente, travestida de inocente impiedade, bateu o martelo:
- Thiago, para o fundo da sala!
Não olhei nos olhos de K. Certamente não estariam lacrimejantes, tampouco por dentro. Olhei. Não olhava pra mim, seus olhos cruzavam com os de uma colega, com quem conversava. E eu, e eu? Num lampejo, rememorei todos os nossos momentos ao longo do unilateral casamento de sete dias. Eternos momentos. Meus olhos choraram. Não foi por conjuntivite. Mas todos pensaram que era.