sexta-feira, maio 01, 2009

Sabor imperceptível (2)

"O amanhã é mistério e o hoje é uma dádiva. Por isso se chama "presente" "

Brian Dyson




O sabor é indetectável. O pensamento chega, fica, passa e não esteve. O traço entre a noite o alvorecer. Uma sopa de sabor indetectável, insondável. E deliciosa.

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Estive a lembrar de algumas histórias.

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Toda infância, de certa maneira, é uma festa. Não importa quantas dificuldades, barreiras e percalços a família encontre, na figura dos pais e irmãos mais velhos, para a criança tudo é uma festa. Festa. Uma grande festa chancelada pela inocência e pela ignorância semi-integral dos auto-hetero-abandonos tão característicos da vida adulta.
Para a criança, o mundo é muito grande. É enorme. Tudo é grande. E assim sendo, tudo toma proporção maior. Uma brincadeirinha, um presente oferecido, um elogio despretencioso, uma festinha, um lanche com colegas... tudo se torna uma farra, uma comemoração, uma alegria, nesse lindo universo que "os anos não trazem mais".
Nesse contexto, fatos curiosos podem ocorrer. Curiosidades que ensinam aos adultos infantis que o mundo pode ser bom, que podemos ser otimistas, e que as pessoas podem ser boas. O que é ser "bom" ou não é uma outra conversa. Mas o senso comum entendeu.
Acho que tenho uma história.
Ano: 1991. Tinha 9 anos de idade. Frequentava um clube perto de casa onde fazia aulas de natação e caratê, à tarde, após o horário escolar. Embalado pelo sol-céu sempre límpido-azul de Salvador, as aulas de natação eram a maior diversão, bem como o intervalo após ela, até a aula de caratê, uma hora depois. Nesse intervalo, jogavamos bola com alguns amigos, ficávamos brincando na piscina, e, principalmente, iamos lanchar.
Lanche!! Ficava maravilhado com aqueles mistos, hamburguers, cheeseburgers, e toda a sucarada exposta acintosamente por cruzeiros ou cruzados (não lembro a moeda), nos painéis reluzentes da lanchonete. Lembro que o misto custava 80, e o hamburger 120. Como só tinhamos 100 para o lanche, acabava sendo o misto.
Nossa! Era tão saboroso que o devorava em cinco minutos. E sempre, sempre, com o jeito espalhafatoso que me era peculiar, pedia outro, a altos brados, à minha mãe e às atendentes da lanchonete do clube, mesmo sabendo que não teria outro sanduiche. E feliz assim mesmo, ia para a outra aula.
E todas as tardes assim era. E assim ia.
Havia nesse lanchonete uma atendente chamada Flávia. Era branquinha, tinha algumas sardas, baixinha, cabelos castanhos, algo acima do peso. Uma simpatia. E bastante tímida tambem. Quando chegávamos, eu sempre ia logo pedindo meu sanduiche, e minha mãe, ao pagar, e enquanto eu comia, sempre arrumava um motivo para elogia-la: "Flávia, como o sanduiche está delicioso!" "Flavia, como você está bonita hoje!" "Nossa, você é uma simpatia!". E assim os dias passavam. Flávia ficava vermelha, sorria timidamente, e partia para realizar seu competente trabalho gastronômico.
Nesses momentos, confinado a meu sanduiche, ia jogando as lembranças desses elogios para meu "escanteio mental". Mal saberia que tudo que é bom deixa marcas pra sempre.
Um dia, após terminar o lanche, permaneci na mesa com a mãe a esperar a hora para a próxima aula. Eis que Flávia, lá do balcão, nos chama: "Dona Rosita, um presente para seu menino!"
Mal podia acreditar... ela tinha feito, por sua conta, dois mistos, de graça! Extasiado, dei pulos, gritos, urros de alegria, e os devorei no espaço de tempo em que comeria um só.
Tudo é maior.

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Por muito tempo esta história ficou esquecida. Lembrei-a recentemente. Lembrei que um elogio, a exaltação de um valor, um gesto educado, "por favor-obrigado-bom-dia" pesam milhões de vezes mais que qualquer outra coisa. Isso rege as relações humanas. E sempre volta, de alguma maneira, sob alguma benesse. Mesmo sob a forma de dois sanduiches misto.