segunda-feira, março 17, 2008

Consultório psiquiátrico - Baseado em fatos reais (5)

"Que mal faz esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?"


Cecília Meireles



A. A. S, feminino, 24 anos, branca, casada, balconista desempregada, ensino médio completo, natural e procedente de São Paulo.
A. compareceu para uma primeira consulta, acompanhada pela mãe, após passar um período de uma semana em uma enfermaria psiquiátrica. Tivera um episódio depressivo grve com sintomas psicóticos.
Na primeira consulta o médico, principalmente o psiquiatra, deve utilizar de todos os recursos semiológicos necessários para obter, em alguns minutos, uma ideia de uma vida de várias décadas. Com essa ideia, associada a sua empatia, bom senso e conhecimentos técnicos, faz as suspeitas diagnósticas e traça uma linha de conduta.
Os conhecimentos técnicos são objetivos e mais ou menos uniformes. contudo o bom senso e a empatia são inatos, imutáveis e pertencentes a uma dimensão tão misteriosa que sequer lhe tocamos a superfície com nossa limitada e arrogante ciência.
- A., você sabe o nome da doença que você tem?
- Doutor, acho que é "depressão"
- E você sabe o que é isso?
Ouvi um esperado não. Os pacientes psiquiátricos, devido ao estigma social e cultural de sua condição, adquirem um rótulo que joga sua auto-estima (que já não era das melhores) no fundo do poço. E pela empatia senti que com A. não era diferente. Olhei fixamente para seu jovem rosto emagrecido e castigado pela curta vida. Disse:
- A medicina classifica sua situação como uma doença. Mas sua "doença" não é como uma gripe ou pneumonia, que você trata, toma uns remédios e pronto. Você tem um desequilíbrio em sua vida como um todo, e observar isso é muito mais importante.
- Meu deus, e até quando vou ficar assim?
- Não sei. Depende de muita coisa, a maioria das quais não conhecemos
Então a esperada pergunta de um atípico paciente psiquiátrico ativo e curioso:
- E que raio de doença eu realmente tenho?


...


Engraçado. O paciente psiquiátrico (o doente mental) adoece no centro de seu funcionamento e interação com os fenômenos do mundo: a mente. Caso mantenha alguma crítica pelo que lhe acontece, deveria em tese estar no minimo instigado para saber do especialista a quem consulta por espontânea vontade o que lhe acontece.
A (finalmente) sofria de transtorno depressivo recorrente (quando são diagnosticados mais de um episódio depressivo separados por um determinado período). Ja havia sofrido dois episódios depressivos graves, e a chance de ter um terceiro beirava os 90%. Medicação, psicoterapia e apoio familiar e social eram fundamentais.
Expliquei a A. toda a informação condensada nesses ultimos parágrafos, repetidas vezes, até ter a impressão de que a mesma compreendeu tudo. Prescrevi sua medicação e pedi que retornasse em 30 dias.
- Doutor, você é tão novinho... nem tem cara de médico!
"Pra ser médico não precisa ter cara. Precisa ter espírito, e isso eu acho que tenho", pensei, rindo por dentro (e um pouco por fora).
- É bom saber que tenho muitos anos de vida pela frente. E acho que você tambem terá, até mesmo porque você é tão novinha... nem tem cara de que vai ao psiquiatra...
Rimos todos juntos... e felizes deixaram o consultorio e a mim no seu interior.

5 Comentários:

Blogger André Chaves disse...

Bozo, tô adorando ler os relatos de suas consultas aqui! Você transmite senão todo, pelo menos uma boa parte do fascínio que a medicina e principalmente a psiquiatria exercem.

Obrigado por nos dar um gostinho do que significa ser médico.

Abração!!!
André

8:27 PM  
Anonymous Anônimo disse...

Faça das palavras as minhas! Vc realmente é um cara especatular, meu velho! Tenho muito orgulho de vc!

abração!

10:17 AM  
Blogger Unknown disse...

Bozo, estou encantada com a sua sensibilidade ao relatar suas vivências na psiquiatria! Que bom saber que há médicos que vão além da ciência e conseguem enxergar o ser humano com toda a sua complexidade! Lindo texto!!!! Beijo repleto de admiração!!!

5:23 PM  
Blogger kyeran disse...

grande bozo, é sempre um prazer vir aqui e estar aprendendo um pouco mais com a sua pessoa. continue postando e grande abraço.

1:20 PM  
Anonymous Anônimo disse...

Quando eu te disse que crínica médica qualquer um faria, eu falava disso. Sensibilidade e um pouco de sorte pra desvendar mistérios assim são poucos que têm. Vá em frente, colega, com certeza, serei sua paciente em breve.

5:38 PM  

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial