terça-feira, março 04, 2008

Consultório psiquiátrico - Baseado em fatos reais (2)

"De tudo que é humano
nada me é estranho
fruto e semente
criatura e criador"


Humberto Gessinger



SÃO PAULO - 11/02/2008

P.M, feminina, 35 anos, mulata clara, balconista (desempregada há 3 meses). Natural e procedente de São Paulo.
P.M apareceu no PS (pronto socorro) psiquiátrico prestes a prorromper em lágrimas. A profundidade do abismo de paredes tristes que construiu ao longo de Deus sabe quantas noites sofridas estava assustadoramente evidente em seus olhos negros.
"Crise depressiva", pensei (em palavras tecnicas: episódio depressivo grave).
- Dona P., o que está havendo com a senhora?
- Ah... nem me pergunte, doutor... nada dá certo em minha vida...
E P.M passou a narrar, durante 30 minutos, profunda história de desilusões amorosas e familiares, que culminaram em ineficiência no trabalho, o que aos poucos minaram quase completamente sua auto-estima e sua vontade de viver. Tentara o suicídio por duas vezes, sem sucesso (graças a Deus). Tem uma filha de 13 anos que refere ser o único objeto no qual vislumbra algum sentido em continuar vivendo. Das noites insones advém o desespero da tristeza infinita que insiste em trasformar seu sol em um buraco negro. Sem expectativa de futuro ou presente. Passado triste, infeliz, sem valor algum. "Que sou eu"?
- Oras, se tua vida vale tão pouco e de nada serve, porque tanto esforço em mante-la? Se tua filha justifica tua vida, porque tanto desejo de acaba-la? provavelmente você tem uma resposta para tudo isso e insiste em esconde-la de si mesmo. Desse jeito, não há médico, psicólogo, anjo ou demônio que resolva teu problema.
Neste momento, vislumbrei por entre os mais profundos, negros e pálidos olhos que ja cruzaram os meus um lampejo, leve e fulgás, e que me deu uma leve esperança de naquele momento ter contribuido com alguma parcela, por mínima que fosse, para salvar uma vida do risco que sua própria dona oferecia.
P.M ainda chorou bastante. Ao fim da consulta, pegou a prescrição do antidepressivo que lhe estendi e prometeu retornar em breve para acompanhamento ambulatorial. Saiu andando devagar, olhando para o chão, totalmente absorta em Deus sabe que negros sentimentos e pensamentos.


...


SÃO PAULO, 04/03/2008 - Ambulatório de psiquiatria

- P..., que bom revê-la! espero que esteja melhor. Como tem passado?
- Doutor... seus remédios e suas palavras me ajudaram bastante... mas não sei o que fazer... parece que tem na minha cabeça um turbilhão confuso de erros e decepções...
E pesadas lagrimas escorreram dos seus abismais olhos por seu rosto.
"Bendito lampejo", pensei. P.M já não pensava naquele momento que sua vida era completamente destituida de sentido e valor. Ou pelo menos, parecia não pensar. Poderia até opinar positivamente a esse respeito, mas pelo menos já imaginava que teria que fazer algo por si própria. Deixara de transferir a responsabilidade por sua dor para o mundo exterior, o que era o grande e principal o passo psicodinâmico no tratamento do episódio depressivo.
Quando acalmou-se, voltei ao assunto da consulta do PS, enfatizando a importância de seu papel proativo no tratamento. Pareceu convencer-se de que eu estava certo.
Conversamos sobre a importancia de usar corretamente a medicação. Expliquei os possíveis efeitos colaterais e tirei suas dúvidas gerais sobre a doença. Ao final da consulta, parecia um pouco melhor. Arrisquei-me a ficar apenas um pouco otimista, pois obviamente não poderia fazer ideia do que exatamente lhe ia no íntimo. Tinha a meu favou uma boa impressão, e isso de certa forma me bastava. E dei-me por satisfeito. Por enquanto.
- Doutor, posso lhe dar um abraço?
- Claro que sim!
"Sua vida vale muito mais que simples abismos de paredes tristes. Escale-os", pensei. Que criatura fantástica é o ser humano!
- Até a proxima consulta. Tudo de bom.
E P.M abriu a porta, e saiu do consultório.

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