Sabor imperceptível (1)
"O segundo, não o tempo, é implacável
Tolera-se o minuto, a hora suporta-se...
... mas o segundo é implacável"
Carlos Drummond de Andrade
Tolera-se o minuto, a hora suporta-se...
... mas o segundo é implacável"
Carlos Drummond de Andrade
Incrível a festa que nossa mente faz. Essa sopa de sabor
indetectável, insondável. Seguir uma forma-pensamento do que quer que seja
seria como tentar seguir uma molécula do que quer que seja no oceano, por
qualquer espaço de tempo.
...
Estive a lembrar de algumas histórias.
...
Há cerca de duas décadas, cursava eu a quarta série do
ensino fundamental (na época, chamava-se "ensino primário"). Era
típico produto da classe média urbana de uma grande cidade. Vivia intensamente
todas as vicissitudes da idade. Sabem aquelas paixões infantis, intensíssimas,
protagonistas principais e coadjuvantes do palco mental de milhões de
pré-adolescentes? Bem, não fugia à regra de ser dominado por elas.
A garota chamava-se K
(por favor, preservem meu direito de lhe esconder a identidade). Não me lembro
o sobrenome dela, embora lembre que por muitos anos evocava primeiramente este
segundo nome ao evocar a imagem de sua dona. Estranho, pensava. Associar o nome
ao sobrenome, e assim, a pessoa ao sobrenome, esquecendo-se do nome...
Aparte conjecturas sobre o nome, vamos à história.
Contava com 11 anos, e encarnava muitíssimo bem o
estereótipo do pré-adolescente tímido e acanhado. Sempre na defensiva,
salvaguardado por um bem criado universo composto por família, brinquedos, alguns
amigos do mesmo sexo e muita fantasia. A garota sequer notava minha presença,
exceto nos momentos de "esbarrão", ou naqueles que por algum acaso o
destino me brindava com a sorte de a mesma me pedir algo emprestado, como um
lápis ou uma borracha. Talvez houvesse outros momentos. Não lembro bem. Sinto que não havia.
Não sabia o que fazer pra chamar a sua atenção, e quando
por acaso (infelizmente, um acaso raro) o fazia, aquela se dava por uns
poucos segundos. Míseras migalhas do tempo. Às vezes, quando um amigo em comum
me perguntava algo, ou quando avançávamos juntos para a mesma maçaneta da sala
de aula, ou quando coincidentemente chegávamos juntos ao balcão de lanche da
cantina pra fazer algum pedido, tinha minhas míseras migalhas de tempo.
Eram segundos lindos! Essas maravilhas da sorte, que mais
se pareciam com brincadeiras, joguetes do destino (como que a saborear sua
imponente superioridade a timidez infantil) brindavam minhas esperanças,
dando-lhes fortes pilares de sustentação. Mas onde estariam as vigas?
Eu não sabia.
Voltemos à escola. A sala de aula era uma bagunça. Havia
conversa o tempo todo. Gritaria, bolinhas de papel voando, discussões sobre
assuntos juvenis, aviãozinho, videogames, docinhos... Tudo isso em pleno
avançar das aulas. No antes, no durante e no depois. O caos adolescente levava
pais e professores à beira do desespero.
Todos sabiam das conversas escusas dos docentes que
propunham a remoção de certos alunos, mais "encrenqueiros", pra
outras turmas. Achavam que separar os alunos bagunceiros mais afins resolveria
o problema. Outros, à beira do limite, propunham punições ainda mais severas
para os conversadores. O assunto era debatido em reuniões de pais, reuniões com
os estudantes. Nada era resolvido.
Por vezes tais conversas escusas se transformavam em
broncas coletivas (o popular "esporro") quando algum professor
finalmente alcançava os limiares da paciência.
Nossos educadores eram reféns. Alguma coisa
precisa ser feita! Diziam.
E assim passaram-se semanas, meses. Finalmente decidiram: mapa de sala!
Mapa de sala: Tratava-se de um artifício onde os
professores decidiam arbitrariamente onde determinados alunos se sentariam
durante o período de uma semana. Após esse tempo, o mapa mudava. A idéia era
manter os alunos afastados de membros da sua "panelinha", grupinho,
equipe ou parceiros preferidos de conversa, diminuindo assim o barulho e o
burburinho intra-classe-trans-aula.
Pra mim, não fazia diferença. Por mim! Tinha poucos amigos em sala. Não era de
conversar muito (embora vontade não me faltasse). Não sei. Era tudo muito novo
e confuso pra mim. Acontece que o Deus, o destino, ou o sei-lá-o-quê que
governa nossa vida, ou simplesmente meu acaso-professora,
resolveram me pregar uma peça. Seria
mesmo uma peça? Até hoje não
tenho resposta. Mas foi uma das peças mais maravilhosas da minha vida. O veneno
era doce. A rapadura era dura.
O mel e o fel.
Ao raiar da segunda-feira, ao chegar à classe, vi que K
Fora randomizada, pelo mapa de sala, para sentar na primeira carteira da fila
do meio. Eu ficara na segunda
carteira! Meu Deus, quisera eu saber o preço de uma molécula de
adrenalina! E ela estava ali, de graça, sem esforço, sem artifícios, sem
acasos, diante de mim, fadada a uma eterna semana de vizinhança didática!
Foi maravilhoso... Não sei se por sua vontade, educação de
fino trato de que era possuidora, presença de espírito, benevolência, troquei
mais palavras com K em poucos dias de vida do que em três anos de colegas de
classe. Cada palavra era um doce. Um sabor inigualável, um bálsamo na alma, um barato, uma dose de qualquer
coisa, qualquer droga. Era
uma droga. Tal sabor me
seguia, ia à minha casa, e lá eu entrava em leve abstinência, pronto pra
receber nova dose no dia seguinte.
E assim fizemos trabalhos de dupla, leitura de textos. Dávamos
bom-dia-boa-tarde um ao outro. Podia fazer algumas brincadeiras infantis (eram
as únicas que conhecia) para lhe chamar atenção (mais pela infantilidade que
pela brincadeira em si), e acabava conseguindo. Afinal, sentávamos em carteiras
contíguas. Constatar tal ventura me levava aos céus... Meu espírito deve ter
emagrecido uns bons quilos naquela época.
Passaram-se os dias (Afinal, uma semana tem apenas sete
deles). Separamos-nos na sexta-feira. No caminho de casa, ia com o coração
apertado. Será que na segunda
ela estará na segunda cadeira e eu na terceira, ou ela será realocada para
outra fila? Era torcer pra
ver.
No domingo, ao brincar no quintal de casa, percebi meu olho
direito (e logo depois o esquerdo) bastante avermelhado, pegajoso e
lacrimejante. Conjuntivite! Disse minha mãe. Meus olhos estavam
chorando por estarem inflamados, mas minha alma não sabia se ria ou se chorava.
Disso dependeria onde K estivesse sentada na segunda-feira.
Após milhares e milhares de segundos, minutos, horas,
cheguei à minha sala de aula. Contava com dez minutos de atraso, e, ainda
assim, percebi que a aula não havia começado. Estranho. Diante da turma, postada em sua
escrivaninha, professora S. permanecia calma, quieta, com uma folha de papel
repleta de quadradinhos feitos à caneta. Só
poderia ser o mapa de sala.
Inseguro, com os olhos conjuntivitemamente lacrimejantes,
dirigi-me para onde julgava ser o meu-lugar-de-sentar. A turma, num gesto de
escárnio apiedado, tratou de travar cochichos e olhares dirigidos ao meu estado
ocular. Não liguei. Liguei, mas não tanto. Ligava
mais para o meu destino, que certamente seria ali decidido em poucos minutos.
Julgava, não por coincidência, que deveria sentar-me ao
lado de K. Fui atraído pra lá, meu inconsciente movimentou as minhas pernas.
Afinal, nosso casamento estava nascendo, e uma semana de vida não poderia se
acabar, morta, assassinada por uma simples canetada num quadradinho num papel.
Sentia-me como num palco. Os colegas de turma eram a
platéia. Eu, meu eu, era
meu próprio camarote. K era a protagonista, e minha alma era um fantoche. O que seria de mim, meu deus?
Eis que professora S., subitamente, travestida de inocente
impiedade, bateu o martelo:
- Thiago, para o fundo da sala!
Não olhei nos olhos de K. Certamente não estariam
lacrimejantes, tampouco por dentro. Olhei. Não olhava pra mim, seus olhos
cruzavam com os de uma colega, com quem conversava. E eu, e eu? Num lampejo, rememorei todos os nossos
momentos ao longo do unilateral casamento de sete dias. Eternos momentos. Meus
olhos choraram. Não foi por conjuntivite. Mas todos pensaram que era.
3 Comentários:
Rapaz, eu poderia ter escrito algo muiiiiiiiiiiiiiito semelhante a isso. Não sei se é por todo o garoto ser assim ou por que as vezes parece que nossas almas são gêmeas nessa porra de mundo doido! Rapaz, perto ou longe sua alma é idêntica à minha.
Rapaz, eu poderia ter escrito algo muiiiiiiiiiiiiiito semelhante a isso. [2]
Na verdade algumas "Senhoras K"'s já passaram pela minha vida. Engraçado é que diversos "mapas de salas" nos levaram para caminhos completamentes diferentes. E graças a nossas estúpida e bela timidez o máximo que eu fazia era chorar e colocar a culpa nas "conjutivites" da vida.
abraços!
Rapaz, eu poderia ter escrito algo muiiiiiiiiiiiiiito semelhante a isso. [3]
Meu "mapa de sala" foi uma quadrilha de são joão e a tal da K foi minha parceira de dança... Eu n tenho lembrança de nenhuma outra festa de são joão na escola, apenas desta!
Abrass!
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